Tudo passa...
“Oh quanta verdade é que a figura deste mundo sempre está
passando e nós com ela. Dos sábios e justos diz Isaías que verão a terra de
longe. Ora vem cá, alma minha, faze por ser sábia, toma as asas da contemplação
e suspende-te nelas, e olha de longe para esta bola da Terra, e verás como a
sua figura sempre está passando. Que é o que vês? Mares, rios, árvores, montes,
vales, campinas, desertos, povoados: e tudo passando.
Os mares, em contínuas crescentes e minguantes; os rios
sempre correndo; as árvores sempre remudando-se, ora secas, ora floridas, ora
murchas; os montes já foram vales e os vales já foram montes ou campinas; os
desertos já foram povoados, e os povoados agora já foram desertos.
Mas olha em especial para os povoados porque o mundo são os
homens. Tudo está fervendo em movimentos que acabam e começam; uns a saír dos ventres
das mães, outros a entrar no ventre das sepulturas; aqueles cantam, dali a
pouco choram; estoutros choram, dali a
pouco cantam; aqui se está enfeitando um vivo, parede meia estão amortalhando
um defunto; aqui contratam, acolá distratam; aqui conversam, acolá brigam; aqui
estão à mesa rindo e fartando-se, acolá estão no leito, gemendo o que riram e
sangrando-se do que comeram.
Daquela porta para dentro ouvem a palavra de Deus, dela
para fora apupam os que passam e dão-lhe vaia. Lá vai um no seu coche com os pés
sobre tela e veludo; atrás das rodas vai um pobre, nu e descalço. E que
turbamulta é aquela que vai cobrindo os campos de armas e carruagens? É um exército
que vai a uma de duas cousas: ou a morrer ou a matar. E sobre quê? Sobre que
dois palmos de terra são de cá e não de lá. E que árvores são aquelas que vão
voando pelas ondas com asas de pano? São navios que vão buscar muito longe
cousas que piquem a língua para comer mais, cousas que afaguem a pele, cousas
que alegrem os olhos, isto é, espécies, sedas, ouro, etç.
Olhai o tráfego! Tudo ferve, tudo se muda por instantes. Se
divertires os olhos, dali a nada tudo achareis virado. O rico já é pobre, o mecânico
já é fidalgo, o moço já é velho, o são já é enfermo e o homem já é cinzas. Já são
outras cidades, outras ruas, outra linguagem, outros trajes, outras leis,
outros homens... Tudo passa!”
Nota – texto colhido de um sermão do notável padre Manuel
Bernardes-1644-1710.
Amândio G. Martins
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