EU, O
DOUTOR
Entrei uma
tarde numa camisaria de onde gastava, com o fim imaginado de comprar uma
gravata. O caixeiro que estava livre de freguês, e que há muito me conhecia,
cumprimentou-me alegremente: “Boa tarde, senhor doutor.”
“Não sou
doutor”, disse-lhe, e era verdade. “Porque é que me julga doutor?”
“Ah, eu
realmente julgava…”, respondeu ele limpidamente.
Pedi
gravatas, escolhi a que preferi, paguei. Nesta altura, o outro caixeiro, que
também de há muito me conhecia, veio para ao pé do colega.
“Boa tarde”,
disse eu para ambos.
Os dois
caixeiros inclinaram-se amáveis e sincrónicos, e, como um só, disseram:
“Boa tarde,
senhor doutor, e muito obrigado”.
Moralidade:
Quando a
opinião nos faz doutores, doutores temos que ser. Na vida social, somos o que
os outros nos julgam, e não o que até fingidamente somos. A nossa personalidade
social, para todos, ou histórica, para os célebres, é uma ideia de nós que nada
tem de nós. O estadista que saiba saber isto tem a chave do domínio do mundo.
Pode, é claro, faltar-lhe a porta; isso, porém, é já destino.
NOTA – Conto
de Fernando Pessoa
NOTA 2 – Este
conto do Grande Senhor trouxe-me à memória o que em tempos ouvi a Jerónimo de
Sousa, ao recordar o dia em que pela primeira vez entrou no Parlamento. Andavam
os funcionários atarefados a indicar aos eleitos os cantos à casa, quando um
deles se lhe dirige apontando: “por aqui, senhor doutor”. Perante a resposta de
que não era doutor, o funcionário, imperturbável, diz: “Ah, desculpe, senhor
engenheiro”…
Amândio
G. Martins
Sem comentários:
Enviar um comentário
Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.