Celebraram-se, recentemente, os quinhentos anos da mortandade de judeus levada a cabo pelo povo de Lisboa, com a bênção dos frades de S. Domingos. [1]
Tudo começou quando um cristão-novo pretendeu esclarecer os presentes na Igreja de S. Domingos que a luz que irradiava da imagem de Cristo não era nenhum milagre, mas apenas a luz do sol. O que tu foste dizer... «Morte aos judeus! Morte aos hereges!». E depois foi o que se sabe: milhares de judeus chacinados na praça pública pelo povo em fúria, instigados pelos frades de S. Domingos.
Com vista, certamente, a celebrar condignamente a efeméride, os novos frades de S. Domingos, há cerca de três anos a pregarem em S. Bento e no Terreiro do Paço, resolveram reeditar a matança dos hereges.
O povo, metido nesta angústia e vil tristeza, onde tudo funciona mal, desde a Justiça à Educação, da Economia à Administração Pública, esperava ansioso por qualquer raio de sol que, incidindo no rosto do nosso primeiro-ministro, sugerisse um pequeno milagre.
E o milagre ocorreu. O rosto do primeiro-ministro[2] iluminou-se como que por milagre. Ouviu-se, então, um bruá no país inteiro. As sondagens dispararam. Finalmente havia alguém que tinha a coragem de “pegar o touro pelos cornos”, de afrontar os direitos instalados. E o primeiro-ministro, com o rosto inundado da luz dos projectores, anunciou ao país as prometidas e indispensáveis reformas: a venda dos medicamentos nos supermercados, a redução das férias judiciais, as aulas de substituição, a avaliação do desempenho dos professores, a suspensão das medidas agro-ambientais…
«Milagre! Milagre!», clamou o povo.
Acontece que um cristão-novo ali presente, na sua ingenuidade, declarou o óbvio: «Isso não é reforma nenhuma. Pelo contrário, não só não vai resolver nada como vai ainda agravar mais os problemas já existentes.» O que tu foste dizer…
O frade de S. Domingos da Justiça[3] clamou em voz alta: «se o povo tem um mês de férias, por que razão os judeus hão-de ter dois meses de férias?» E o frade de S. Domingos da Agricultura[4] clamou: «Houve três judeus que usaram os subsídios da agricultura agro-ambiental para encher as suas piscinas.» E, por sua vez, a freira de S. Domingos da Educação[5]clamou: «10% dos judeus faltam às aulas». E já não houve tempo para outras explicações. «Morte aos judeus! Morte aos hereges!», clamaram o povo e os frades de S. Domingos. E os hereges foram literalmente arrancados dos tribunais, das escolas, dos campos, das farmácias, dos hospitais, dos quartéis, etc. pelo povo em fúria e espezinhados e queimados na praça pública, enquanto os frades de S. Domingos iam lançando mais achas para a fogueira, bradando em voz alta contra o fim dos interesses corporativos.
Consumada a matança dos hereges, veio a constatar-se, segundo os relatórios do Banco de Portugal, da OCDE e do FMI, que as prometidas reformas, afinal, ainda não tinham saído da cartola. E se se fizer um estudo comparativo com anos anteriores sobre a produtividade e a qualidade do trabalho dos nossos tribunais e das nossas escolas, facilmente se constata que não houve melhorias.
Para perceber o que se passou nas escolas e nos tribunais, basta recordar apenas um extracto da entrevista de António Cerejeira, director de recursos humanos da IBM: «O que faz a diferença são as pessoas. Se tivermos empregados motivados, isso terá impacto no resultado».
O Governo fez tudo ao contrário. Com medidas pontuais e ridículas e declarações públicas ofensivas da dignidade das classes profissionais, desmotivou as pessoas e feriu de morte sobretudo os melhores profissionais, aqueles que cumpriam e superavam os objectivos que lhes eram propostos. E agora o Governo ficou com o menino nos braços.
Sem esquecer que não basta legislar para que as reformas se concretizem. É necessário, para que as mesmas tenham sucesso, que não esbarrem na resistência passiva daqueles que as têm de implementar: magistrados, funcionários administrativos, professores, médicos, polícias, etc. Caso contrário, as reformas ainda produzem resultados piores do que aqueles que pretendem corrigir.
Ou seja, para que as reformas tenham sucesso é necessário que o Governo conte com a colaboração e o empenho dos judeus. Mas, para isso, não os pode queimar na praça pública…
Abril de 2006
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[1] Este texto foi escrito em Abril de 2006, em plena perseguição às classes profissionais levada a cabo pelo Governo socialista de José Sócrates. Infelizmente o actual governo PSD/CDS manteve rigorosamente a mesma estratégia do anterior governo de perseguição aos “judeus”, como se o único móbil das diferentes classes profissionais fosse a defesa intransigente dos seus privilégios e os membros do Governo fossem todos tão magnânimos que apenas se movessem na defesa do interesse nacional.
[2] José Sócrates, primeiro-ministro socialista do XVII Governo Constitucional.
[3] Alberto Costa, ministro da Justiça do PS.
[4] Jaime Silva, ministro da Agricultura do PS.
[5] Maria de Lurdes Rodrigues, ministra da Educação do PS.
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