FOGO
Os fogos das últimas
semanas obrigam-nos a reflectir sobre as nossas próprias emoções. Horror, medo,
queixa e curiosidade mórbida ou artística – segundo o conceito kantiano do “belo-horrível”
– serão os sentimentos dominantes. Horror, medo e curiosidade não necessitam de
explicação; mas já a merecem as nossas queixas, lançadas em tantas direcções,
que se arriscam a contradizer-se e inclusivamente a ser injustas, irrealistas e
pouco práticas.
Por que ardem
as nossas florestas ? Em primeiro lugar, porque as temos. Demos graças a Deus e
a quem as plantou. Em segundo lugar, porque as abandonámos. Também tem o seu mérito.
Significa que abandonámos a velha e dura vida rural, em que vegetámos tempo de
mais, numa agricultura de sobrevivência e de penúria extrema. Lá vão os tempos,
felizmente, em que era vital um molho de carqueja, uma carrada de mato, uns
ramos podres na lareira…
Saudades?
Sim, também eu tenho saudades dos carros de bois chiando pelas encostas
verdejantes, mas não era eu quem roçava o mato, quem o carregava e
descarregava, quem aguentava o suadoiro da calma, fueiro ao ombro, puxando pela
soga, quem tratava do gado, quem enfiava os socos no esterco das cortes…
Não há agora
quem vigie os montes! Pois não. Quem quiser embrenhe-se neles e abrigue-se num
casinhoto perdido, como dantes, ordenhe as suas cabras, cave a sua horta, curta
frios e gelos, cheire a fumo e suor, espie o panorama de sempre, e morra para lá,
salvo seja, como um cão…
Que
pretendemos, afinal? Se aspiramos a grandes meios de combate, é porque contamos
com grandes incêndios. Não nos queixemos, pois, quando eles vierem. Se desejamos
evitá-los a sério, dupliquemos o funcionalismo público, mais os impostos, não há
outro remédio. Porque, vistas de perto, as serras são mesmo muito grandes.
Não estou
metendo-me em políticas. Simplesmente, acho que devíamos esclarecer-nos a nós
mesmos. Queremos conservar uma floresta selvagem, em aras de ecologia, ou
reconvertê-la em actividade produtiva, am aras de economia? Ambas as coisas? Óptimo.
Mas convinhamos primeiro em demarcar as respectivas zonas.
É trabalho
para uma geração, pelo menos. Entretanto, o fogo terá de limpar o que não
arrumamos nós, e, honra lhe seja, está cumprindo escruplusomente a sua missão.
Como dizia acima, é uma consequência lógica e previsível da urbanização e da
industrialização que tanto estimamos. O seu justo preço.
Mas devíamos
fomentar a agricultura!... Decerto. Qual? A antiga não dá. É trabalho muito
sujo, dizem os que a padeceram. Sujo e miserável, impróprio de gente civilizada.
E a nova agricultura ainda está sujeita a bravo debate. Demorará e definir-se e
a equilibrar-se, naturalmente.
Que proponho,
então? Que se defendam do fogo, sobretudo, as casas de habitação, isto é, as
vidas humanas(mas não como em certa povoação, cortando a vegetação das bermas e
deixando as ervas ali, bem secas, a fazer de pólvora…): que haja paciência,
pois isto vai demorar; que se olhe para a floresta de modo científico,
industrial, comercial, turístico e até histórico; que se prossigam os esforços
feitos nesse sentido e continuem discutindo-se estratégias de ordenação arbórea…
Mas não choremos lágrimas de crocodilo pelos matagais que desprezámos e abandonámos
à intempérie, como se estio e vento fossen ladrões de riquezas nacionais, aqui
d`el-rei, que ninguém os mete na cadeia.
Não nego que
as nossas matas constituem tesouro a não perder, mas, vejamos: até que ponto são
verdadeiras riquezas? Só na medida em que efectivamente as possuírmos, as
dominarmos, pudermos fazer delas o que quisermos. Se escapam ao nosso domínio,
constituem meros bens potenciais, simples possibilidade de enriquecimento
futuro, não bens actuais, efectivos. Para dizer de outro modo: são bens, mas
ainda não são nossos.
A floresta
hirsuta e bravia, mais do que uma riqueza, é um perigo. A madeira crescida e
colhida à toa não é produção económica, mas uma espécie de “totolenha”.
Floresta por trabalhar é couto de bichos, não de homens. Paisagem do nosso
desinteresse, da nossa inércia, da nossa incúria. Que o fogo a confunda, quase
apetecia exclamar…
Espero que não
me leia algum pirómano. Dele não diria que o fogo o confunda, porque já lhe
confundiu os miolos, coitado. E quanto a criminalidade, o que sabemos ao certo é
que ela não seria possível – em tal ordem – se não fosse o estado actual das
nossas matas…
zzzzzzzzzzzzzzzzzzzz
Nota – Este longo
texto é muito antigo, cerca de vinte anos, diria, e foi escrito por um
sacerdote católico, monsenhor Hugo de Azevedo, que em tempos teve uma coluna
semanal no Jornal de Notícias, de onde tomo a liberdade de o transcrever. É que
ele é tão actual que se pode aplicar totalmente à situação desgraçada que este
ano vimos atravessando…
Amândio G. Martins
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