SONHAR
A vida é boa
quando de todo se perdeu e se tem pena de não se ter vivido, como a água dum
rio, depois de haver chegado ao mar, chora por não apanhar mais sol e banhar
mais raízes de árvores.
Custa a
perdê-la, porque se tem sempre a esperança de se encontar um lugar, um momento,
em que se construa a quimera; custa a perdê-la, pelo que está fora dela – o
Sonho – como um tronco que arde e se extingue, tem-se pena de não se deitar
mais labareda e de se não ser ainda brasido: por tudo o que se não realizou,
por tudo o que se deixou fugir.
Quando se
morre, o que se debate ainda dentro de nós com fúria – é a quimera. O que me
custa a deixar não é o corpo, é a alma inquieta. Com a morte agarrada a mim, porque é que cravo as
unhas na vida, raivosamente ? Porque quero sonhar, tirar das coisas, das
árvores, da luz, das flores, materiais para ilusões. Ao que cada um se prende é
às suas aspirações, às suas penas e não à matéria e ao corpo!...
Morrer é não
sentir, não ver, não ouvir, e o que custa não é perder tudo isto sempre igual,
sempre a mesma coisa, deixar as pedras com que arquitectamos para além. Vêde: a
vida aborrece, mas cada um guarda no seu íntimo a secreta esperança de realizar
não sei o quê… Muitas vezes nem se sabe… E se a ilusão cai por terra, morta e
inerte, fica sempre a aspiração de sonhar, a raiva de tecer mais doirado…
As mesmas
acções, as mesmas cores, direis vós… Cá fora é certo, mas dentro o cenário
muda: o cenário está em brasa. Queres ser rei ? Queres vingar-te ?... Sonha!
NOTA – Texto
de Raul Brandão – “A Morte do Palhaço” – transcrito por
Amândio G.
martins
Sem comentários:
Enviar um comentário
Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.