Esse génio que me confunde
“Quando vivemos constantemente no abstrato – seja o abstrato do pensamento, seja o da sensação pensada – não tarda que, contra nosso mesmo sentimento ou vontade, se nos tornem fantasmas aquelas coisas da vida real que, em acordo com nós mesmos, mais deveríamos sentir.
Por mais amigo, e verdadeiramente amigo, que eu seja de alguém, o saber que ele está doente, ou que morreu, não me dá mais que uma impressão vaga, incerta, apagada, que me envergonho de sentir. Só a visão derecta do caso, a sua paisagem, me daria emoção. À força de viver de imaginar, gasta-se o poder de imaginar, sobretudo o de imaginar o real.Vivendo mentalmente do que não há nem pode haver, acabamos por não poder cismar o que pode haver.
Disseram-me hoje que tinha entrado para o hospital, para ser operado, um velho amigo meu, que não vejo há muito tempo, mas que sinceramente lembro sempre com o que suponho ser saudade. A única sensação que recebi, de positiva e de clara, foi a maçada que forçosamente me daria o ter de ir visitá-lo, com a alternativa irónica de, não tendo paciência para a visita, ficar arrependido de a não fazer.
Nada mais...De tanto lidar com sombras, eu mesmo me converti numa sombra – no que penso, no que sinto, no que sou. A saudade do normal que nunca fui entra então na substância do meu ser. Mas é ainda isso, e só isso, que sinto. Não sinto propriamente pena do amigo que vai ser operado. Não sinto propriamente pena de todas as pessoas que vão ser operadas, de todos quantos sofrem e penam neste mundo. Sinto pena, tão-somente, de não saber ser quem sentisse pena”.
Transcrito por Amândio G. Martins
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