sábado, 18 de janeiro de 2020

O PROFUNDO SENTIDO MÍSTICO E ÉTICO DA CHAMADA ORAÇÃO DOMINICAL – “O PAI NOSSO”.


Segundo o renomado filósofo brasileiro Huberto Rohden, um dos maiores pensadores cristãos contemporâneos, de quem tive a honra de ser aluno, a oração dominical é um transbordamento da vivência cósmica do Cristo, ou seja, uma tentativa de exteriorização de sua experiência divina.
Tal oração está inserida no maior recado de Deus à humanidade – o Sermão da Montanha –, que, na abalizada opinião do professor universitário Nelci Silvério de Oliveira, é o “coração do evangelho, e a oração do “Pai Nosso”, o coração do Sermão da montanha”.
Importante observar que oração e prece se distinguem. Esta é uma petição, origem latina de “preces-precum” da raiz do verbo “precari”, rezar, recitar, suplicar; aquela, procedente do vocábulo latino “os-oris”, significa boca, abertura. Assim sendo, a prece é um ato de pedir; já a oração, uma atitude de abrir o recôndito da alma para Deus, uma boca aberta a receber o alimento divino, como o filhote de um pássaro alimentado pela mãe.
O “Pai Nosso” é, inicialmente, uma oração de grande profundeza mística e, no final, uma prece de natureza ética, através de várias súplicas.
No começo há uma evocação seguida de cláusula adjetiva explicativa, ou seja: Pai nosso, que estás nos céus. Pai nosso, isto é, o Creador de tudo que está em toda a parte do universo. Está fora de tudo, em sua transcendência, e dentro de tudo, em sua imanência, como um sol que envolve tudo, com seus raios, e está fora de tudo, nas alturas. Pai nosso é o próprio Deus que está no infinito, que, segundo a doutrina espírita, “é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas” e, conforme genial visão de Spinoza, é a alma do universo, o que lhe causou uma tenaz perseguição por parte de seus confrades judeus fanaticamente apegados a uma divindade antropofórmica personificada, no “deus dos exércitos”.
Depois desta afirmação inicial, reconhecendo a paternidade absoluta de Deus, vem um período composto por subordinação constituído de três cláusulas optativas, ou seja, que manifestam um desejo, um propósito, enfim uma boa vontade daquele que ora. Tais cláusulas representam o objeto do desejo, por isso são substantivas objetivas diretas.
Nesse ponto, ouso discordar da grande maioria dos teólogos, exegetas e de meu grande mestre Huberto Rohden (ele preferia ser chamado apenas de professor), os quais consideram tais cláusulas como petitórias. São elas: “santificado seja teu nome”, “venha a nós o teu reino” e “seja feita a tua vontade, na terra como no céu”. Os verbos estão no modo subjuntivo.
Muitas vezes tive intenção de mostrar essa minha discordância durante as palestras e encontros com o Prof. Rohden, mas uma certa timidez me impedia de fazê-lo, embora tivesse eu bons argumentos para convencê-lo, não só como estudioso da análise lógica ou sintática, com modesta obra publicada sobre a matéria, mas também com base no sentido místico dessa parte da oração ensinada pelo Divino Mestre.
É de se convir que, nesse trecho da oração, há coisas que nem sequer podem se pedidas, mas aceitas, como por exemplo, a soberana realização da vontade de Deus, que é o cumprimento das leis eternas.
O próprio Rohden, no livro que ele deixava transparecer como sua obra prima, “A Metafísica do Cristianismo”, onde disseca com grande sabedoria todo o sentido da oração dominical, afirma que “não podemos pedir que a vontade divina seja feita, porque semelhante petição seria absurda, uma vez que a vontade divina nunca deixou de ser cumprida”. Assim, pois, o que podemos fazer é apenas desejar, demonstrando uma atitude de compreensão, para que a lei de Deus se cumpra por nós, com toda a aceitação, isto é, que nossa vontade se harmonize com a vontade divina, porque nossa alternativa é apenas a escolha de cumprir gozosamente ou dolorosamente a lei do supremo Creador.
Pela mesma forma, “venha a nós  teu reino” é algo que deve eclodir dentro de nós. Depende de uma atitude nossa. Jesus afirmou que o reino de Deus, sua justiça, a autorrealização da criatura humana está dentro de nós. A graça de Deus nos ajuda, é claro, mas depende de nós essa abertura interior, para recebê-la. A milenar filosofia espiritualista oriental proclama que, quando nos esvaziamos de nós, Deus nos preenche de si. É preciso haver um egoesvaziamento para que ocorra um teoplenitude. Num dos itens da introdução do Sermão da Montanha, está escrito: “Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus”. Não se trata de uma visão física de Deus, isso é impossível, mas de uma experiência de Deus em nós.
Deus está sempre conosco (imanência), mas podemos não estar com Deus. Abrahão Lincoln, o grande presidente dos Estados Unidos, que não era filiado a nenhum setor religioso, mas era homem que cultivava a religiosidade, sabia disso. Quando terminou a grande guerra civil, que dividiu o país, o general vitorioso disse: Presidente, vencemos. Deus estava conosco. Respondeu-lhe o ilustre governante da nação americana: “Isso para mim não é novidade, porque Deus está com todo mundo, resta-me saber se estamos com Deus”.
Santificado seja teu nome. Deus é o anônimo de mil nomes, não é pessoa, é um espírito universal. Não se trata de apenas respeitar o nome de Deus, não o mencionando em vão, mas de reconhecê-lo na manifestação de toda a natureza, como integral, perfeito, como significa o vocábulo santo. Devemos manter atitude de admiração e compreensão diante de tudo, não só nas maravilhas de tantas coisas, mas também nas adversidades naturais, que ainda acontecem contingencialmente, devido à inferioridade de nosso planeta, que ainda não atingiu um grau evolutivo ideal.
As quatro cláusulas finais são realmente petitórias, de cunho ético. “O pão nosso dá-nos hoje”. O texto original que já se apresentava na língua grega, nos primeiros 50 anos do cristianismo, não tinha a redundância corrente nos dias atuais – “cada dia” e “hoje”. Segundo Rohden, estava escrito no original grego a palavra “epiousia”, um neologismo que significa “conforme a natureza”, que foi confundido com “epion”, cujo significado é cotidiano, do dia. Em face disso, pede-se a Deus o alimento para a subsistência, conforme a natureza integral do homem, isto é, corpo e espírito. Em determinada parte do Evangelho, Jesus afirmou que não só de pão vive o homem. O pedido do pão inclui o ar que respiramos, o remédio que tomamos, o alimento material que nos sustenta, que, com o auxílio de Deus, deve ser conquistado honestamente como fruto do trabalho de cada um.
Perdoa-nos as nossas faltas, dívidas e ofensas, como também devemos fazer com aqueles que nos ofendem. No texto grego e no latino, apareciam, respectivamente, os termos “aphiemi” e “demitere”, que significam desligar. Dessarte, o pedido a Deus se volta para o desligamento total de todos os efeitos causados pelas ofensas. Mais tarde surgiu a palavra latina perdão, que significa grande doação, doação total, daí então, a súplica a deus tem o escopo de buscar uma grande doação de forças para as nossas fraquezas causadoras de ofensas e, consequentemente, devemos doar aos que nos ofendem a força da compreensão relativamente às faltas por eles cometidas.
Em seguida, vem o pedido para não sucumbirmos diante das tentações, que são tantas no mundo ainda pouco evoluído em que vivemos, onde predominam as paixões inferiores e muitas coisas negativas provenientes do atraso espiritual reinante. Conheci duas senhoras muito religiosas que achavam que a queda não seria apenas moral, mas também física, sendo que esta seria também fruto de uma tentação de um espírito inferior, que deve ser afastado com vigilância e oração – o “vigiai e orai” ensinado por Jesus, com observância da ordem, ou seja, primeiramente vigiar.
Finalmente, vem a petição: “Livra-nos de todo mal”. Uma súplica para que sejamos protegidos de todos os perigos e males.
Em resumo a oração-prece dominical ficaria assim expressa: Pai nosso, divindade universal que está no infinito, por toda a parte, inclusive dento de nós; completa, perfeita seja considerada por nós a sua revelação em todas as coisas; que teu reino de justiça e amor ecloda na intimidade do ser que somos e que a nossa vontade se harmonize com o cumprimento de tuas soberanas leis. Dá-nos, hoje, o alimento de conformidade com nossa real e completa natureza corporal e espiritual; desligue-nos das ofensas que praticamos, tal como desliga-nos de suas ofensas os que as praticaram contra nós. Encha-nos de abundante doação, como de grande doação enchermos os nossos semelhantes, diante dos efeitos causados por nossas fraquezas. Dá-nos força para superarmos as tentações que surgirem em nossos caminhos e livra-nos de todo mal, inclusive o da inércia e da má vontade que nos estacionam na jornada evolutiva em busca da nossa autorrealização.

1 comentário:

  1. O professor deixa-nos uma verdadeira "oração de sapiência" na matéria...

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