Vinte e cinco anos sem Torga...
Transcrevo apenas a parte final do conto a que Torga chamou “O
Senhor”, mas que eu registei na memória como “O padre parteiro”, assim como chamo
“O abafador” ao que o mestre chamou “O
Alma-Grande”.
...“Quando o Malaquias surgiu finalmente, ajoelhado na estrumeira
do quinteiro, de mãos erguidas, por um triz que não foi pisado pela avalanche piedosa e cega.
-É a tua mulher? – perguntou o prior. –É, sim senhor.
Fez-se um silêncio penoso, que repôs o céu na sua altura e
roubou a cada um o íntimo sentimento de comparticipação divina.
-Há quanto tempo adoeceu ela? -Foi só agora, do parto...
-Mas já teve a criança? – Pois não. E é por isso que está tão
malzinha...
Um arrepio de comoção terrena percorreu a multidão
desencantada.
-Anda lá à frente. O moleiro guiou o prior até junto da
mulher. Fechado no tabernáculo do quarto, o halo de irradiação sobrenatural não
tinha forças para atravessar as paredes.
-É o senhor que me trazem? – gemeu a Filomena, acordada para
a inefabilidade a que a chamava a capa doirada do sacerdote
-É... –Pois sim...Pois sim...Mas o meu menino...há três dias
que estou aqui neste calvário.
-Vai lá para fora, João. –Disse o padre ao sacristão, que
colou numa caixa a vela que segurava e saíu.
-Ora diz lá outra vez! –Débil, a Filomena renovou o
queixume. –O menino, quer saír e não pode...Há bocado pôs a mãozinha de fora...
Grossas bagadas corriam das têmporas do sacerdote. Inopinadamente,
os valores mudavam de sinal, o transitório sobrepunha-se ao eterno, e só uma
coisa se mantinha firme diante dos seus olhos de homem: a moleira estendida no
leito, com um filho dentro dela a pedir mundo.
-Ó Malaquias, em vez de me chamar a mim, porque não foste
ter com o médico de Lordelo? –Fui, mas está doente. Mandou-me à vila, e lá
pediram-me um conto de réis...
-Bem, ouve, espera aí fora um migalho...
A cara branca e pálida da Filomena parecia polvilhada de
farinha que cobria tudo. Enternecido, o prior olhou-a com simpatia humana e,
naquela comunhão, depôs o sagrado viático ao lado da vela, tirou a estola do
braço, despiu a capa e disse, ao mesmo tempo que levantava a roupa da cama:
-Mostra lá! Era a primeira vez que via uma mulher naquele
abandono.Filomena, do seu lado, embora já quase despedida deste mundo, também
sentiu no corpo a brisa de um pudor violado.
-E a Matilde, a parteira, já cá veio?
-Não fez nada, que só o doutor...
-Malaquias, traz água! E agora vai aquecer uma pouca. -O
desgraçado correu à cozinha e o prior, num arrepio de pecado, pegou na
pequenita mão. Os dedos estremeceram-lhe de nojo e de medo ao contacto daquela
carne tenra, mas um momento depois tacteavam confiantes dentro da Filomena. Depois
de um grande esforço da Filomena e do padre, um pequenino pé saíu preso à garra
que o fora buscar.Era meio caminho andado, e o prior estava decidido a chegar
ao fim.
-Tem paciência, minha filha. Duas lágrimas de gratidão
desceram do rosto da mulher.
-Malaquias, traz água quente. O moleiro entrou no quarto e
quando viu o filho quase de fora ia deixando caír a vasilha.
-Não fiques a olhar como um palerma, pousa isso e arranja
tesoura e linha, mexe-te!
Faltava só a cabeça, que saíu depois de Filomena gastar as últimas
forças. -Pronto, já cá está!
Na exclamação do padre Gusmão havia qualquer coisa de herético,
mas nada podia comover mais o moleiro do que ver o filho a espernear naquelas mãos
que acabavam de o roubar à escuridão do nada".
Transcrito parcialmente por Amândio G. Martins
Pungente e... belo!
ResponderEliminarTranscrevi apenas a parte mais impressiva do conto, que preenche várias páginas do livro; para lá do seu génio, Miguel Torga era transmontano, profundo conhecedor daquela gente e do tão pouco que tinha quem lhe valesse nos apertos.Chamado para dar os últimos sacramentos a uma moribunda, manda dar ao sino o toque de "Senhor fora", que faz a população acorrer para o acompanhar com rezas e cânticos, e quando chega ao local depara-se com uma mulher em trabalho de parto complicado...
ResponderEliminarEra... telúrico!
Eliminar