quinta-feira, 12 de dezembro de 2019


Bem mortos e enterrados...


...Todos os sacanas são excelentes pessoas.   “A tarde já vai avançada. Vou abrindo jornais e cortando os anúncios funerários. É um género de trabalho que me reconcilia sempre com a humanidade. Se devêssemos acreditar nas participações, o ser humano seria absolutamente perfeito: pais irrepreensíveis, esposos virtuosíssimos, filhos sem defeitos, mães devotadas até ao sacrifício, homens de negócios com arroubos de São Francisco de Assis, generais cintilantes de bondade, procuradores acessíveis à piedade, fabricantes de munições quase desinteressados.
 
Em suma, a Terra parece habitada por legiões de anjos cujas asas só crescem depois da morte. É uma floração de virtudes miríficas, de fiéis cuidados, de perfeitos desinteressamentos. Os que ficam são dignos dos desaparecidos: prostrados na dor, a perda é para eles insubstituível, jamais esquecerão o defunto, etç. Que reconforto e que orgulho pertencer a uma raça tão virtuosa!

Recorto a participação do mestre padeiro Niebuhr, “terno esposo e pai devotado”. Eu próprio vi a Srª Niebuhr, de carrapito desmanchado, fugir de casa perseguida pelo excelente marido, que a desancava com um cinturão; e vi o braço que o pai devotado deslocou ao filho Roland quando, num acesso de cólera, atirou o infeliz garoto pela janela do rés-do-chão. Não poderia ter acontecido maior felicidade à viúva “curvada pela dor” do que encontrar um dia o seu energúmeno atingido por uma apoplexia quando enfornava os croissants e os bolos fermentados.A verdade é que a morte tudo apagou”.

Nota – apontamentos colhidos no livro anexo.


Amândio G. Martins

1 comentário:

  1. Os cemitérios estão cheios de "boas pessoas" e, mais ainda, de "insubstituíveis"...

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