sábado, 20 de junho de 2020


Do tabu da morte...


“É tão estranho que entre a avalanche de saberes úteis e inúteis que acumulamos uma vida inteira não esteja este: aprender a morrer. A contemporaneidade fez da morte um tabu, o mais temido e ocultado, e deixa-nos completamente impreparados para enfrentar a naturalidade com que a vida é, afinal, próxima dela.

A morte surge como uma interrupção, um interdito de linguagem mais inconveniente do que uma asneira, uma dor para viver às escondidas, uma intromissão com a qual em nenhum momento contámos. Sobre a morte não sabemos o que dizer, nem o que pensar. E isso constitui, de facto, uma falta enorme. Ao recolocar-nos dramaticamente perante o mistério que somos, a morte como que resgata a própria existência. É que podemos levar uma vida inteira sem pensar no que ela é: surge-nos como um dado óbvio, esventrado de qualquer interrogação, uma certeza assente, sem mais, e não é assim.

A vida não é só este tráfico de verbos activos, esta marcha emparedada e sonâmbula, este vogar entre deve e haver, esta contabilidade no lugar da metafísica. A vida não é só isto. A morte amplia-a. Revela-lhe um fundo que não vemos. São, por isso, tão necessários os versos de Rilke:
“Senhor, dá a cada um a sua própia morte./ Um morrer que venha dessa vida/ que reparte por nós amor, sentido e aflição./ Porque nós somos apenas a casca e a folha./ A grande morte, que cada uma traz em si,/ é o fruto à volta do qual tudo gira””


Transcrito do livro anexo por
 Amândio G. Martins







2 comentários:

  1. O "seu" texto é, mais uma vez, duma oportunidade total. Num momento em que a "morte assistida" volta à tona na AR e até já motivou uma prévia posição "desabrida" da Ordem dos Médicos (voltarei a isto em texto próprio, mais tarde). Neste momento, espoletado pelo belo "naco" de prosa de TM ( a estética não quer dizer total concordância...) venho aqui só para registar alguns "recuerdos" com reflexões. E lembrei-me duma palestra que fiz - há uns bons 30 anos - sobre "A morte de uma criança" ( logo aqui, permitia-me perguntar: onde está o "Senhor"?...) e dum magnífico opúsculo - "História da Morte no Ocidente", de Philippe Ariés (Ed. Teorema) - que bem nos descrevia o variado modo como vemos a morte através dos tempos. Desde a precoce e "domesticada", da Idade Média, até à nossa contemporânea "morte oculta" e/ou "morte interdita". Dantes morria-se em casa e com festa, hoje "morre-se longe" e... "tapando os olhos". E lembro-me que terminei a minha "charla" com um diapositivo retirado duma banda desenhada intitulada "St. Exupéry", em que se via o despenhar do aviãp do autor de "O Principezinho", tendo no "balão de texto", escrito " A morte é..." Fico por aqui. Mas grato a si e ao poeta/cardeal ( no texto estão as duas vertentes, como quase sempre...) por serem tão oportunos.

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  2. Realmente, só os poetas podem ter para "Ela" aquele olhar que poucos entenderão; vejamos este soneto da Florbela Espanca:

    Morte, minha Senhora Dona Morte,
    Tão bom que deve ser o teu abraço!
    Lânguido e doce como um doce laço
    E, como uma raíz, sereno no forte.

    Não há mal que não sare ou não conforte
    Tua mão que nos guia passo a passo,
    Em ti, dentro de ti, no teu regaço
    Não há triste destino nem má sorte.

    Dona Morte dos dedos de veludo,
    Fecha-me os olhos que já viram tudo!
    Prende-me as asas que voaram tanto!

    Vim da Moirama, sou filha de rei,
    Má fada me encantou e aqui fiquei
    À tua espera...quebra-me o encanto!

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