quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Respigo

....- Eu explico. Para nós, humanos, e sobretudo para nós, gente da nossa geração, compreender significa tornar racional, construir pressupostos e seus derivados envolvidos numa rede intrincada que procuramos dominar através de um vasto conjunto de operações lógicas. Ora isso não é compreender, é quando muito explicar. O grande motor da vida é a compreensão, e o que nos permite, como dizia há pouco, compreender tudo é a liberdade. Só muito tarde, só já muito despegados da vida, podemos atingir o grau de liberdade que nos abre o acesso pleno à compreensão.
- Sim, e então?
- Sem tentarmos dominar o caos que está na essência da condição humana, dificilmente organizariamos a vida, a relação entre as pessoas, os comportamentos em sociedade.
- Fala da distinção entre o bem e o mal?
- Ora vê? Acabou de dar um tiro no porta-avioes. Essa é a grande questão. Nós precisamos dessa distinção entre o bem e o mal. Ela é o essencial para o equilíbrio da nossa vida em comunidade, não podemos prescindir de o fazer. Só que isso é, ao mesmo tempo, como se de um absurdo se tratasse, uma necessidade e um erro. Uma necessidade, porque não podemos habitar no caos. Um erro, porque é no caos que se encontra a plenitude da condição humana.
- Quer isso dizer...
- ...que só no caos é possível atingir a total compreensão do humano. Aí não existe julgamento. As coisas são o que são e não aquilo que devem ser. A partir do momento em que as coisas são aquilo que devem ser, perdem grande parte da sua verdadeira essência, deixam de ser o que são. Deixamos de ver as coisas para passarmos a ver a sua representação. Deixamos de as compreender. Explicamo-las apenas, e, quando a explicação falha, julgamo-lasde acordo com um critério de bem e de mal que é já uma construção própria de um mundo liberto da sua natureza caótica..
- Mas o senhor que é juíz, melhor que ninguém sabe que tem de ser assim. É para isso que servem as leis, não é verdade?
- É claro que é verdade. E nao existe contradição entre aquilo que digo e a minha condição de juiz. É claro que nao poderia ser de outra forma. Mas a gravidade em confundir os dois planos é, pelo menos, tão grande como a de negar a existência de ambos. Veja o que acontece com a liberdade. Todos estamos de acordo na ideia de que ela não é absoluta, que importa colocar-lhe limites, acrescentar-lhe responsabilidade, criar sanções para o seu exercício desregulado. E tudo isso está certo. O problema é que ela é  na sua essência, absoluta. E é dessa que nós precisamos para póder compreender. Está a ver agora?
-.........

( Retirado de " O Beco da Liberdade" de Álvaro Laborinho Lucio, Ed. Quetzal)

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